HOMILIA DO ANO NOVO 2019

AS SEMENTES QUE FARÃO GERMINAR A PAZ

 Neste dia Mundial da Paz, meditemos, irmãos, como é que a paz poderá germinar nos nossos corações. Será a paz uma utopia, isto é, um sonho impossível de realizar? Uma meta inalcançável? Um bem reconhecidamente consensual por todos, que perseguimos, mas, sempre fugindo à nossa frente, nos escapa. Quando estamos prestes a alcançá-la, a paz nos escapa por entre as mãos qual enguia escorregadia. Como diz o poeta Carlos Péguy, «a paz é como uma flor frágil, que procura desabrochar por entre as pedras da violência» (1). Queremos acreditar que, apesar de tudo, a paz é possível, se, efectivamente, semearmos as sementes que a farão germinar. Antes, porém, de clarificarmos quais as sementes que a farão germinar, interroguemo-nos: que paz é esta que queremos colher no jardim da nossa vida? A paz como ausência de guerra? Não é esta a paz que nos interessa. A paz dos cemitérios de quem nada faz na construção do mundo melhor, de quem se resigna silenciosamente perante o mal, o pecado, enfim, o mistério da iniquidade? Não é esta a paz que queremos construir. A paz resultante do equilíbrio inseguro dos medos que alimentam a corrida aos armamentos? Não é esta a paz que queremos ver germinar. A paz dos estados fortemente policiados, que aniquila a liberdade de pensar, de agir, de sonhar? Não é esta a paz que queremos ver nascer. A paz dos silêncios que subjugam o outro no medo das relações (conjugais e não só)? Não é esta a paz que nos interessa. Então, qual a paz que gostaríamos de colher no jardim das nossa vidas? É a paz que nasce da justiça, do diálogo, da compaixão, do perdão, enfim, do amor. Esta será, então, a plenitude dos bens: a felicidade.

Eis as sementes que farão germinar a paz:

O DIÁLOGO – que, em nome da paz, procura ver a razão do outro; que permite escutar os seus pontos de vista; que gera pontos de aproximação; que é capaz de ceder em vista à paz e à tranquilidade.

A JUSTIÇA – a atitude de quem dá ao outro o que lhe pertence, reconhecendo os seus direitos: na ordem material e na ordem espiritual. Dar ao outro o que o direito lhe confere como propriedade é a exigência elementar da justiça que fará germinar a paz. Dar ao outro o supérfluo, que não nos pertence, mas àquele que dele carece para a sua existência condigna. Dar ao outro os bens espirituais a que tem direito – a amizade, o respeito, o perdão, a reconciliação – é exigência da justiça.

A COMPAIXÃO – a atitude de quem se aproxima do outro na sua fragilidade (de dor, sofrimento, solidão, doença, acidente…) e, solidário, faz sua a sua fragilidade, a sua dor, a sua dificuldade, procurando curá-lo, libertá-lo dentro das suas reais possibilidades, qual bom samaritano.

O PERDÃO – expressão da compaixão, o perdão apaga a ofensa como a onda que lava as pegadas na areia. Carece da recíproca humildade: de quem perdoa a culpa e pede o perdão; de quem perdoa porque ama e quer reatar o amor.

O AMOR – de quem deseja e faz o bem ao próximo; de quem se deixa conduzir pela máxima moral: ‘não faças ao outro o que não queres que te façam a ti’; de quem acolhe no coração e na vida o mandamento do Senhor: «amai os vossos inimigos» e «amai-vos uns aos outros como eu vos amei».

Jesus, nascido em Belém, segundo as profecias de Isaías, é «o príncipe da paz», «o mensageiro da paz». Anunciado no seu nascimento pela corte celeste como aquele que traz a paz aos homens: «paz na terra aos homens, que Deus ama». Aquele que declara «bem-aventurados os construtores da paz». Aquele que convida o jovem rico a cumprir os mandamentos para alcançar a vida eterna: «não matarás». Aquele que, chorando sobre Jerusalém, declarou que ela seria destruída por não ter reconhecido quem lhe poderia dar a paz. Aquele que convidou os seus discípulos a serem arautos da paz: «em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: a paz esteja nesta casa». Aquele que, ressuscitado, comunica a paz aos discípulos: «a paz esteja convosco» e lhes dá a paz que o mundo é incapaz de dar: «deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração». Aquele que não está, e, por isso, não é responsável, onde há violência, guerra, terrorismo, injustiças, perseguição por motivos de religião ou de raça. Aquele que não está onde se levantam muros físicos, morais, que impedem a construção da fraternidade universal dos filhos de Deus. Na sua mensagem para o Dia mundial da Paz, o Papa Francisco recorda aquele instrumento jurídico da construção da paz – a Declaração Universal dos Direitos Humanos – no seu septuagésimo aniversário. Acentua a dupla obrigação de reconhecer os direitos e de cumprir os deveres correspondentes. E conclui, reconhecendo três dimensões na construção da paz: «a paz consigo mesmo, rejeitando a intransigência, a ira e a impaciência e – como aconselhava São Francisco de Sales – cultivando «um pouco de doçura para consigo mesmo», a fim de oferecer «um pouco de doçura aos outros»;  «a paz com o outro: o familiar, o amigo, o estrangeiro, o pobre, o atribulado…, tendo a ousadia do encontro, para ouvir a mensagem que traz consigo»; «a paz com a criação, descobrindo a grandeza do dom de Deus e a parte de responsabilidade que compete a cada um de nós, como habitante deste mundo, cidadão e ator do futuro»(2) Semeadores das sementes que farão germinar a paz assim queremos ser ao longo do novo ano.

[1] Charles Péguy, Le Porche du mystère de la deuxième vertu (Paris 1986)

[2] Papa Francisco, Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2019