Onde se encontram as normas da formação musical litúrgica?
No inicio do séc. XX, o Papa São Pio X, escreveu o Motu Proprio Tra le sollecitudini, sobre a música sacra. Neste documento foi sublinhada a importante função da música sacra como um meio de elevação do espírito a Deus, e como ajuda para os fiéis na “participação activa nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja”. Nele, o Magistério ofereceu à Igreja indicações concretas naquele sector vital da Liturgia, apresentando-a “quase como um código jurídico da música sacra” Este delineamento foi retomado pelo Concílio Ecuménico Vaticano II, na Constituição Sacrosanctum concilium sobre a sagrada Liturgia, onde se menciona com clareza a função eclesial da música sacra. O Concílio recorda, que “o canto sacro é elogiado seja pela Sagrada Escritura, seja pelos Padres, seja ainda pelos Pontífices Romanos, que sublinharam com insistência a tarefa ministerial da música sacra no serviço divino”. Já no séc. XXI, o Papa S. João Paulo II escreveu o Quirógrafo sobre a música sacra por altura do centenário do Motu Proprio Tra le sollicitudini, reforçando que aqueles princípios ainda são válidos. Já depois o Cardeal Ratzinger publicou o seu livro «Introdução ao Espírito da Liturgia», reforçando estes ensinamentos e concluindo que «na Missa cristã, não podem ser admitidos todos os tipos de música, porque ela estabelece uma norma: a norma é o logos. E o Logos é a Palavra personificada em Cristo». São Pio X formulava com estes termos a importância do tema: “Uma composição para a Igreja é tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproximar, no andamento, na inspiração e no sabor, da melodia gregoriana, e tanto menos é digna do templo, quanto mais se reconhece disforme daquele modelo supremo”. O cântico gregoriano é todo ele feito de melodias, não há compasso e o rito é apenas a respiração do cantor. O Concílio Vaticano II acolheu plenamente esta orientação e estabeleceu também os instrumentos a usar: “Tenha-se grande apreço, na Igreja latina, pelo órgão de tubos, instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de trazer às cerimónias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito a Deus e às coisas celestes. Deve-se, porém, reconhecer que as composições actuais utilizam frequentemente modos musicais diversificados não desprovidos da sua dignidade. Na medida em que servem de ajuda para a oração da Igreja, podem revelar-se como um enriquecimento precioso. É preciso, porém, vigiar a fim de que os instrumentos sejam aptos para o uso sacro, correspondam à dignidade do templo, possam sustentar o canto dos fiéis e favoreçam a sua edificação”. A liturgia tem de ser capaz de expressar a magnificência que é pertencer a Deus. É por isso que nós, católicos, temos que nos questionar se o modo como estamos a celebrar a liturgia tem revelado aos homens a face de Deus ou a nossa. Será que os cânticos que utilizamos na Missa despertam nas pessoas um nobre sentimento de pertencer à Igreja de Jesus, ou com as nossas facilidades e simplificações estamos a sonegar-lhes o próprio tesouro da fé da Igreja? Será correcto privar a liturgia de um aspecto tão sensorial como a Música Sacra que a enobreceu durante tantas épocas? A conversão carece duma experiência totalmente alheia ao que vivemos. A pesca pressupõe que o peixe seja tirado da água para a terra. Cristo pescou a nossa alma tirando-a dum ambiente para colocá-la noutro completamente diferente. As nossas tentativas de “acomodar” o sagrado à banalidade das nossas vidas não consegue trazer as pessoas de volta à Igreja. Muito pelo contrário, é justamente o espanto diante do sagrado, do sobrenatural, que nos iça da lama da nossa miséria. Vejamos o que aconteceu, nas suas próprias palavras, ao famoso escritor francês Paul Claudel em 25 Dezembro de 1886: “… Depois, não tendo nada melhor a fazer, voltei para assistir às vésperas. As crianças do coro, vestidas de branco, e os alunos do seminário cantavam o que mais tarde soube ser o Magnificat. Eu próprio estava de pé entre a multidão, junto do segundo pilar à entrada do coro, à direita da sacristia. E foi então que se produziu o acontecimento que domina toda a minha vida. Em um instante, o meu coração foi tocado e acreditei. Acreditei com tal força de adesão, com tal elevação de todo o meu ser, com tão poderosa convicção, com tal certeza sem deixar lugar a qualquer espécie de dúvida, que, a partir de então, todos os livros, todos os raciocínios e todas as circunstâncias de uma vida agitada não puderam abalar-me a fé, nem mesmo, para ser mais preciso, atingi-la. Tive de súbito o forte sentimento da inocência, da eterna juventude de Deus, uma revelação inefável.(…) As lágrimas e as soluções vieram… e o canto tão doce do Adeste fideles aumentou ainda mais a minha emoção.” Este é o relato dum homem que se converteu ao ouvir uma música sacra. Será que semelhante experiência teria sido possível se o coro estivesse a cantar um dos nossos cânticos? Claramente “o Espírito sopra onde quer”, mas será coerente esperar que o Espirito Santo se adeque à constante escolha do esquema que nos é mais fácil?