No verão somos todos Sherazade. Retardamo-nos em conversas que se alongam, sem cronómetro nem pressa de parar, encandeadas pela aparente ausência de um propósito, e que não pediram, como é normal noutras estações, uma razão, um lugar e um tempo pré-fixados.
Conversas que são, na sua quase ligeireza, uma espécie de navegação sem rota, mas durante as quais com maior rapidez, e não raro de maneiras para nós próprios surpreendentes, nos reencontramos connosco próprios.
Não sei se é um privilégio das caminhadas feitas ao calor escaldante, se são os seus dias mais longos e os encargos mais breves, ou se é a limpidez da praia e a frescura abrigada da varanda que, de repente, nos permitem contarmo-nos uns aos outros, capazes de improviso de evocações, narrativas e confidências.
No verão damo-nos finalmente conta de ter uma história, que se declina numa pluralidade de pequenas histórias, no entrelaçamento dos sentimentos, das coisas vividas ou não, saboreadas com entusiasmo ou mastigadas com sofrimento, mas que se tornaram inseparáveis de nós.
Então damo-nos conta de que não somos afásicos como supúnhamos enquanto adicionávamos experiências em turbilhão, mas sem nada para dizer, subtraindo-nos ao tema da conversa – quando o tema é a vida. Então damo-nos conta de que somos capazes de presença.
É bom que o verão permaneça assim, com o seu não sei quê de improvisado e frugal: desta maneira somos ajudados a dar valor àquilo que é realmente importante.
D. José Tolentino Mendonça, In Avvenire